SOBRE A ENCENAÇÃO


QUANDO A REALIDADE SUPERA A FICÇÃO

Já não sei que tempo faz, mas a imagem e a sensação foram tão fortes que ainda as trago impregnadas de tal forma que não me restou outra alternativa/tentativa a não ser me servir delas neste novo trabalho.
Alta noite, noite fria, de chuva fina, outono em São Paulo. Voltávamos de algum lugar rumo a outro lugar. Do carro, avistamos, apesar da neblina e da chuva rala, do outro lado da pista da Avenida Paulista, um mendigo que corria envolto por um cobertor vermelho. Pedi para que parassem o carro. Entre xingamentos e a insatisfação dos amigos desci e vi que, em determinado ponto, o mendigo parou, abriu o cobertor vermelho, o fez de capa e, como se alçasse voo, percorreu mais um longo percurso da avenida com sua correria alucinada. Com o braço direito para o alto, (ou foi o esquerdo? Minha memória quer evocar o direito!) punho cerrado, o mendigo corria sua louca corrida, e essa corrida, apesar da atmosfera úmida (molhada, encharcada), fazia com que o cobertor vermelho, agora transformado em capa, flutuasse no ar. Puxaram-me para dentro do carro. Eu, molhado e paralisado, suspendi o tempo e não ouvi as reclamações dos amigos ou o alerta para o perigo de termos parado em plena Avenida Paulista durante uma madrugada daquelas ou para receitas do dia seguinte para um possível tratamento-relâmpago para um provável resfriado. Só pensava na força daquela imagem/ação/acontecimento. O mendigo calado, em sua corrida alucinada/alucinante/alucinógena, fazendo de seu cobertor uma capa, desafiando a nebulosa/poderosa/chuvosa Avenida Paulista com sua carga simbólica de poder econômico, os seus prédios de concretos altíssimos, sua extensa beleza de (re)significação do nosso tempo. Quem estaria, afinal, nas janelas daqueles prédios residenciais ou ainda, apesar da alta noite, nos prédios comerciais dobrando seu horário no trabalho? Será que viram o que eu vi? Será que desejaram voar como/com aquele mendigo? Se pudessem, o quê ou quem eles desafiariam vestindo cobertor/capa vermelha?
O mendigo afrontou a noite fria, a cinzenta e bela Paulista. Calado ele enfrentou o silêncio e a sua solidão. Vestiu-se de herói para brincar de humano. Se desfez do fardo de anti-herói, de marginal, para integrar-se a cidade coberta pela escuridão, pois provavelmente, ao raiar do dia, se refugiaria no esconderijo dos vilões de si mesmos. Quis ele vencer a tempestade, quero imaginar, ao final de seu caminho corrido, deitando-se no asfalto e cobrindo-se com seu cobertor vermelho, assim, vencendo a chuva com sua menor grandeza.
A chuva cessou. Raios vermelhos surgiram no horizonte anunciando a aurora. Nunca mais temi voar.
CUIDADO: FRÁGIL! é uma nuvem que carrega seus envolvidos e espectadores num voo sobre nós mesmos. Talvez do alto tenhamos a sensação da real vertigem que é simplesmente existir.

Mauro Júnior / Outono de 2010