quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Críticas sobre o espetáculo

Sábado, Setembro 18, 2010

Cuidado: Frágil!

Esse é o título de um recente espetáculo da Cia. da Farsa que tive o privilégio de assistir. Remete-me automaticamente à famosa expressão "a bull in a china shop's approach". É sempre uma preocupação recorrente em primeiros encontros: não agir como "um elefante em uma loja de porcelana"! - como ficou consagrada a expressão em português. Não é à tôa que Jacques Lacan evoca essa expressão para referir-se à interpretação, já que ela incide sobre um elemento de suposta fragilidade. Se na relação terapêutica o cuidado já está implícito na função, na relação amorosa nem sempre. Afinal de contas, muitas das vezes o que conta, principalmente para o lado masculino, é a ousadia de tomar a inciativa na hora certa. Claro que a peça não trata desse assunto. Se o evoco, é porque tive a ousadia - ou a temeridade - de escolher o referido espetáculo para o cenário de um primeiro encontro. Não é difícil imaginar o que é frágil na peça. De minha parte, tomo a liberdade de comentá-la sem o caráter criterioso de uma crítica especializada, mas também sem a ingenuidade de um espectador burguês. Se há alguma fragilidade subjacente à vivência de todos os personagens, pode-se dizer, em termos lacanianos, que se trata da fragilidade do simbólico. Em termos mais gerais, é o sentido da vida que parece em crise na pluralidade de situações apresentadas no palco. Da diversidade de experiências - um guitarrista surdo e mudo, fã dos Beattles; uma professora asmática relativamente bem acomodada dentro de seu cativeiro (um guarda-roupas); um travesti que sente na pele que a identidade sexual não existe; uma menina que, depois de sofrer exploração sexual e ser presa, lamenta não ter a filha por perto; um eloquente cachorro vegetariano; uma personagem que descobri representar um feto em processo de aborto após ler o blog da Cia (não sei se por lerdeza de minha parte ou por excesso de abstração) - enfim, de toda essa diversidade, pode-se demarcar um aspecto transfenomênico: a crise de sentido. Talvez crise de sentido não seja o mais exato porque, em alguns momentos, tem-se a impressão de que a vida dos personagens parece transmitir um sentido bem preciso, até excessivamente denso, mesmo que seja um sentido de insatisfação. Eu diria, então, a crise do simbólico. Isso quer dizer que, embora os sentidos de suas vidas estejam muito bem definidos - o lugar da mulher em seu guarda-roupa, do cachorro, em sua calçada, da menina, em sua prisão e do feto em seu aborto - eles não são suficientes para conterem a angústia de existir. Pode-se, quem sabe, dizer que é mais uma denúncia da banalidade dos sentidos. Destaco, para sustentar minha tese, uma trecho dito pelo travesti, comparando a vida a uma roda-gigante, onde todos estão rodando felizes e ele está do lado de fora, assistindo. De certa forma, todos os personagens estão, de algum modo, excluídos do que consideram ser sua própria vida. Isso remete a uma analogia proposta pela psicanalista Maria Rita Khel, dizendo que a relação do neurótico com o gozo de sua vida é como a de quem supõe que, em algum lugar da cidade, está acontecendo uma festa para a qual todos teriam sido convidados, exceto ele mesmo. É uma sensação realmente muito comum no cotidiano moderno, já que somos veementemente levados a crer na disponibilidade do gozo e da felicidade para todos e, no final das contas, o nosso próprio gozo sempre parece mais ou menos aquém do ideal. Pode não ter sido exatamente esse o clima pretendido pela Cia., mas, uma vez encenada a peça, é a audiência quem passa a decidir sobre o sentido das coisas - ainda que às vezes influenciada pela crítica especializada. De qualquer maneira, é eminente em todos os personagens uma insatisfação generalizada perante a vida, uma angústia latente ou patente. Daí minha preocupação em ter entrado como um elefante numa loja de porcelanas! Não terá sido um tema muito sofisticado e angustiante para um primeiro encontro? Ela era uma bela morena de longos cabelos castanhos, lisos e rajados por suaves luzes, cujo semblante pareceu-me lívido demais para uma cena de nudez masculina que transmite a crueza presente no teatro contemporâneo (que me parece sempre adotar uma postura diferenciada: ao invés de tentar tratar o real pelo simbólico - ou seja, de tentar dar sentido às coisas inexplicáveis da vida - opta sempre pela estratégia inversa: trata o simbólico pelo real, ou seja, utiliza alguns artifícios cenográficos, como a própria nudez, a expressão da angústia, dentre outros que denunciam a fragilidade do simbólico para dar conta do real. Denunciam a fragilidade de nossos discursos para dar conta da grandeza que é o fenômeno de nossa vida e de nossa existência). Para minha sorte, ela é enfermeira e deve estar acostumada a cenas mais grotescas, além de demonstrar um refinamento estético que chegou a me surpreender. Ela direcionava seu olhar castanho e atento para o palco, enquanto eu divisava furtivamente suas expressões, contemplando seu belo nariz, suavemente talhado sobre uns lábios ligeiramente espessos e serenos. Suas reações, porém, eram tão discretas a ponto de não lhe revelar os afetos que poderiam emergir daquelas cenas. Após um agradável passeio pelas redondezas do Palácio, todo meu receio de temeridade já se havia esvaído, restando agora a sensação agradável de poder comentar um espetáculo tão refinado com alguém tão esteticamente sensível. Enfim, para os leitores mais corajosos, fica a sugestão de ir ver o espetáculo. Para os mais medrosos, fica também a sugestão de ir vê-lo, quem sabe não sirva para espantar um pouco a angústia de viver, já que vivenciá-la simbolicamente - mediada pela belíssima interpretação dos atores - pode ser um modo de elaborar as próprias crises existenciais. Não recomendo, porém, que seja num primeiro encontro, pois os inícios são sempre frágeis, e você pode não ter a sorte que tive de ter uma companhia com uma vivência cultural tão singularmente apurada! Texto de Fábio Bispo, postado originalmente no blog cartasvivas.blogspot em 18 de Setembro de 2010

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